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segunda-feira, 30 de setembro, 2024
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Covid: desafia o Brasil a melhorar a qualidade e a transparência de dados

Na semana em que o país ultrapassa o patamar de 100 mil mortos pela pandemia da covid-19, e passados aproximadamente cinco meses do primeiro registro oficial de morte, as estatísticas sobre a doença se mantêm como um quebra-cabeças para pesquisadores e o público em geral. Por trás das páginas repletas de gráficos que mostram a trajetória e a localização das infecções pelo novo coronavírus e os números de óbitos e pessoas curadas, jaz um vasto sítio de ocorrências desconhecidas, ou apenas parcialmente descritas pelos levantamentos oficiais nas esferas federal, estadual e municipal.

Quando a pandemia acabar, ou tiver arrefecido, os órgãos sanitários, as universidades e os pesquisadores independentes terão ainda de fazer uma cuidadosa escavação para determinar de fato o quanto a pandemia afetou a população brasileira em seus mais variados contornos: desde a situação social até a aspectos como a cor, o gênero e as doenças pré-existentes. O que se têm como muito provável, até em razão do aumento incomum de casos de Síndrome Respriratória Aguda Grave (SRAG) é que há muita subnotificação.

“Desse levantamento e análise dependerá a capacidade de resposta que teremos a um novo problema grave no futuro”, adverte em entrevista  a cientista política e pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), Lorena Barberia. 

Ela acrescenta, “É preciso ter claro que isso não vai se dar na internet. A gente precisa fazer entrevistas, olhar documentos e coletar dados que não estão circulando publicamente. E, por último, a gente precisa entender melhor o mapeamento de contatos da população e como a sociedade se inter-relaciona em diferentes faixas etárias e grupos sociais. Se tivermos um bom mapa de contatos, de como a sociedade se move, vamos estar melhor preparados para a próxima pandemia, que certamente virá”.

Entenda os conceitos de dados, informação, conhecimento e aplicação

Conhecimento

O conhecimento é o resultado obtido depois do cruzamento, da associação e da depuração dos dados, de preferência com base em metodologia, de modo a se obter conclusões ou, no mínimo, hipóteses plausíveis sobre uma determinada realidade. Esse conhecimento deve ser capaz de subsidiar a opinião individual ou pública, ações, programas, projetos ou políticas.

Informação

A informação é a ordenação e a organização dos dados de forma a transmitir significado e compreensão dentro de um determinado contexto. Nessa etapa, os dados deixam de ser estáticos e adquirem dinamismo. O cruzamento e o relacionamento de dados geram o conhecimento. Por isso é preciso dados em quantidade e qualidade suficientes para formulações e análises.

Dados

O dado é a unidade básica da informação e do conhecimento. Isolado, não têm relevância, não conduz a nenhuma compreensão. É o registro estático, em sua forma primária, de um fato, situação, estado, condição, característica.

A fragilidade das estatísticas brasileiras não vem de março para cá, de acordo com a própria pesquisadora da USP. Segundo Lorena, há dados sobre desemprego consolidados e aplicação e verbas públicas que demoram até três anos para serem divulgados, e que seguem sendo corrigidos por muito tempo. O que a pandemia fez foi levar a exigência da divulgação instantânea ao ponto do estresse máximo.

“Hoje a grande maioria dos órgãos públicos federais produtores de dados estatísticos e geográficos mantêm seus sistemas de informações, de modo geral, sem possibilidade ou obrigatoriedade de compartilhamento automático uns com os outros, com os órgãos das demais instâncias de governo (estados e municípios) e demais poderes”, lamenta o Doutor em Ciências Sociais e Presidente da Associação dos Consultores e Advogados do Senado Federal (Alesfe), Marcus Peixoto.

Segundo ele, o “déficit estatístico” é também uma decorrência da falta de uma demanda legal por avaliações de impacto legislativo, como parte do planejamento das políticas públicas e de seus resultados:

“Qualquer alteração legislativa deve ser precedida de um diagnóstico da realidade que a justifique, e da definição de objetivos que se pretenda alcançar. Só com esse ciclo completo da política pública é possível se implementar algum tipo de prestação de contas e responsabilização para os gestores públicos, sejam eles os formuladores das políticas ou os seus executores”.

Defensor de mais eficiência nos gastos, Peixoto é  cético quanto ao clamor puro e simples por forte controle das verbas necessárias ao cumprimento das obrigações constitucionais. E diz sentir falta, tanto no Governo Federal quanto no Congresso, de maior preocupação com uma política de dados que se apresentem em quantidade, qualidade e tempestividade para garantir eficiência à ação do Estado.

Formulário

Um dos calcanhares de Aquiles dos bancos de dados no Brasil é a falta de padronização, deficiência que se torna especialmente danosa num momento em que é necessário agir de forma coordenada para combater e prevenir uma doença em nível nacional. Como controlar o contágio, aplicar testes, providenciar leitos de UTI e respiradores artificiais se não há informação compartilhada e pública sobre o que está ocorrendo de verdade em cada município e até em cada bairro? 

A Lei de Acesso à Informação (LAI), 12.527 de 2011, até garante a oferta transparente de dados, mas a organização do conteúdo em planilhas é fundamental para que uma realidade complexa seja visível e compreensível por muita gente ao mesmo tempo — principalmente quando a informação tem de ser produzida por profissionais de saúde trabalhando na ponta do atendimento e por gestores de todos os níveis em 5.570 municípios, 26 estados federados, o Distrito Federal e na sede do governo federal em Brasília. 

Com base na Lei 13.979/2020, o Ministério da Saúde instituiu um minucioso formulário para levantamento de dados relacionados à covid-19, o “Instrutivo de preenchimento da ficha de notificação de caso de Síndrome Gripal suspeito de doença pelo Coronavírus 2019 — Covid-19”, que está publicado na internet.  

“O formulário é de preenchimento obrigatório, mas nem todas as informações que constam no formulário são preenchidas pelas unidades de saúde ou pelos governos. Isso faz com que a gente tenha uma base com informações relevantes, mas constantemente incompletas” explica a professora de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), Michelle Fernández. Assim como a pesquisadora da USP, ela integra, com dezenas de outros estudiosos, a Rede de Pesquisa Solidária sobre a pandemia. 

“Uma das hipóteses para a lacuna de dados tem a ver com a sobrecarga dos profissionais de saúde. Como eles têm tido muito trabalho durante a pandemia, o preenchimento desses dados não se dá de forma correta, ou eles acabam preenchendo o mínimo para dar conta do volume de demanda. Por outro lado, há a forma como as plataformas são apresentadas pelos governos. Às vezes, elas não contemplam todas as variáveis que deveriam contemplar, e por isso a informação não é qualificada”, observa Michelle. 

Tratamento

Entenda primeiro o que significa o tratamento de dados ou da informação. Esses dois termos aparecem como sinônimos na legislação, ainda que, de acordo com algumas teorias, sejam etapas distintas para se atingir o conhecimento.

Tratamento diz respeito a ações como coleta, recepção, produção, classificação, utilização, reprodução, acesso, extração, transporte, transmissão, difusão, distribuição, comunicação arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação, destinação ou controle.

Lei de Acesso à Informação (LAI) 12.527, de 2011

O artigo 3º assegura o direito fundamental de acesso à informação, conforme os princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes:

 Observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção

 Divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações

 Utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da informação

 Fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na administração pública

 Desenvolvimento do controle social da administração pública

Lei de Acesso à Informação (LAI) 12.527, de 2011

O artigo 5º estabelece que é dever do Estado garantir o direito de acesso à informação, que será franqueada, mediante procedimentos objetivos e ágeis, de forma transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão.

Os artigos 10 e 11 disciplinam o direito de os cidadãos em geral solicitarem a órgãos públicos informações de interesse público que não estejam disponibilizadas nos meios de divulgação oficiais. O requerente não precisará explicar os motivos da solicitação. O órgão ou entidade pública deverá autorizar ou conceder o acesso imediato à informação disponível. Caso contrário, deverá comunicar como isso será feito ou explicar o motivo da recusa — ou se não dispõe da informação. Da decisão do órgão demandado cabe recurso.

Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) 13.709, de 2018

O artigo 7º permite que o tratamento de dados pessoais seja executado, entre outras situações:

 Pela administração pública, para uso compartilhado necessário à execução de políticas públicas;

 Para a realização de estudos por órgão de pesquisa, garantido, sempre que possível, o anonimato do titular;

 Para a proteção da vida ou da incolumidade física do titular ou de terceiro;

 Para a garantia da saúde, em procedimento realizado por profissionais da área ou por entidades sanitárias.

Lei 13.979, de 2020 — Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da covid-19

O artigo 5º estabelece o compartilhamento obrigatório entre órgãos e entidades da administração pública federal, estadual, distrital e municipal de dados essenciais à identificação de pessoas infectadas ou com suspeita de infecção pelo coronavírus. A obrigação estende-se às unidades de saúde privadas quando os dados forem solicitados por autoridade sanitária.

O Ministério da Saúde deverá manter dados públicos e atualizados sobre os casos confirmados, suspeitos e em investigação, relativos à situação de emergência pública sanitária, resguardando o direito ao sigilo das informações pessoais.

A Cartilha Técnica para a Publicação de Dados Abertos orienta:

Os dados devem estar em seu formato mais bruto possível, ou seja, antes de qualquer cruzamento ou agregação. Mesmo que o órgão ou entidade ache importante e já tenha publicado alguma visão de agregação desses dados, existe grande valor no dado desagregado. Dessa forma, o órgão ou entidade pode publicar esses dados nas duas formas.

Os dados devem estar em formato aberto, não proprietário, estável e de amplo uso.

Não deve existir nenhum instrumento jurídico que impeça sua reutilização e redistribuição por qualquer parte da sociedade.

A Cartilha Técnica para a Publicação de Dados Abertos orienta:

Para os dados que são estruturados ou estão em planilhas na sua fonte, deve-se preservar ao máximo a estrutura original. É recomendável a disponibilização dos dados em diversos formatos, mas não se deve publicar planilhas em arquivo PDF.

Entre as planilhas adequadas são mencionadas o CSV (Comma-Separated Values), JSON (JavaScript Object Notation) e o XML (Extensible Markup Language).

É extremamente desaconselhável a utilização de mecanismos anti-robôs, como captchas, para acesso aos conjuntos de dados.

Considerando que é desejável facilitar a indexação dos dados por motores de busca, sendo esta uma importante forma do cidadão encontrar os dados que procura, é recomendável que os nomes dos arquivos sigam as boas práticas de criação de endereços de arquivos (URLs).

Há inúmeros exemplos de diferenças entre as planilhas de dados.  

Enquanto a planilha publicada pela prefeitura de Manaus é bem detalhada, contendo dados como o sexo, a faixa etária, o bairro, a situação do caso, a existência de comorbidades, o tipo de teste aplicado e a cor, entre outras, a planilha do Distrito Federal publicada até o dia 13 não trazia informação sobre testes, embora em um espaço de quinze dias tenha passado a acrescentar as comorbidades, segundo a professora da UnB, que revê a publicação periodicamente. 

Em nenhuma dessas duas planilhas aparece a categoria “puérpera”, condição da mulher que deu à luz recentemente, caso do banco publicado pelo governo de São Paulo, mas que não contém o dado “cor” e que, ao contrário da planilha do DF, registra a idade exata do paciente. A planilha de Manaus indica tanto a idade exata quanto a faixa etária. Ressalta nesses e em outros exemplos a enorme variedade na disposição das categorias. Em algumas, aparece a idade em primeiro lugar, em outras, o gênero. 

A melhoria na página do Distrito Federal é um fenômeno comum durante a pandemia, diante das pressões que os governos têm recebido da comunidade científica, de parlamentares e da imprensa por dados desagregados e transparentes. 

No Senado, o projeto PL 2.179/2020, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS) obriga o registro de marcadores étnico-raciais, idade, gênero, condição de deficiência e localização dos pacientes atendidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e pelas instituições privadas de assistência à saúde em decorrência de infecção pelo novo coronavírus. 

“Todas as instituições de assistência à saúde devem atuar de forma combinada, integrada e complementar, auxiliadas pelas instituições de pesquisa e de regulação, para que políticas públicas eficazes e efetivas sejam adotadas, de forma tempestiva e ágil”, argumenta o senador na justificação do projeto. “Nesse contexto, é fundamental a produção de informações precisas sobre fatores de vulnerabilidade, como raça, gênero, idade, condição de deficiência e localização geográfica da população atingida. Sem tais informações, o inimigo não será corretamente identificado, e ceifará suas vítimas de forma indiscriminada, impedindo até mesmo que o Estado direcione seus esforços para evitar mortes e o colapso da rede de atenção à saúde”. 

Paulo Paim chama a atenção para o fato de que nas grandes metrópoles “a concentração urbana e a exposição ao contágio colocam em risco quem menos condição tem de se defender, ou mesmo de, isolando-se do contato social, não ser afetado”. Nesse contexto, as populações negras e pobres são as mais afetadas. “As taxas de contágio e mortalidade tendem a se elevar nesses segmentos, em razão de sua situação social e econômica, de condições de habitação e saneamento, e de acesso aos serviços públicos”. 

Essa maior vulnerabilidade, conforme o parlamentar, têm raízes profundas na formação do país: “o histórico de precariedade e exclusão social, racial e de gênero das populações residentes em favelas e periferias, em palafitas e outras situações de risco agrava um quadro já dramático”. 

As preocupações de Paim encontram eco em algumas publicações oficiais, como a do governo paulista, que esclarece na sua página de microdados: “campo de etnia nos sistemas de notificação não é de preenchimento obrigatório, havendo baixa taxa de respostas”. 

Fonte: Agência Senado

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