26/07/2015 09h30
Após 10 anos, dúvida ainda paira sobre quilombo na Picadinha
A dúvida paira. Afinal, a Picadinha tem ou não tem quilombo? O questionamento completa uma década este ano e segue sem resposta. De um lado, o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) dá continuidade a um procedimento administrativo que está chegando à reta final e reconhece a área como quilombola. Do outro, os produtores que contestam a legalidade dos estudos do instituto e tem conseguido pareceres favoráveis na Justiça Federal indicando que as terras não pertencem aos descendentes de escravos.
O passo mais recente foi dado pelo Incra. Em portaria publicada no Diário Oficial da União do dia 14 deste mês de julho, o instituto reconhece e declara como terras da Comunidade Remanescente de Quilombo “Dezidério Felipe de Oliveira/Picadinha” a área de 3.538,6215 hectares reivindicada em Dourados. Desse total, segundo o documento, será objeto de regularização fundiária para fins de compensação social uma área de 2.631,6400 hectares.
Ao Dourados News, o Incra informou que a portaria não regulariza o território da Comunidade, mas reconhece e declara os limites da terra quilombola. O próximo passo é a edição de decreto declaratório de interesse social, emitido e assinado pela Presidência da República. Ainda conforme o órgão, a publicação da portaria é uma das etapas administrativas do processo de regularização fundiária de um território quilombola, “reconhecendo e declarando os limites da terra quilombola e que possibilita o prosseguimento das outras etapas”.
Conforme descreve a própria portaria do órgão, para chegar a essa conclusão o Incra considera, entre outros fatores, o RTID (Relatório Técnico de Identificação e Delimitação) elaborado e aprovado pelo instituto, decisões judiciais que impedem e também as que permitem a inclusão futura de algumas matrículas. Também leva em conta a proposta de acordo submetida à apreciação da comunidade no dia 15 de novembro de 2014 em reunião realizada na comunidade Picadinha com representantes do Incra, das Associações Quilombolas, do MPF (Ministério Público Federal) e do Governo Estadual. A Comunidade Quilombola descendente de Dezidério ainda mora numa parte da área da Picadinha.
NA JUSTIÇA
Os fazendeiros que estão na terra reivindicada pelos descendentes de escravos querem a anulação do processo administrativo do Incra por, segundo eles, ilegalidade e imoralidade administrava por parte do órgão e por ferir o artigo 37 da constituição. Para isso, buscaram a Justiça Federal. Todos os aproximadamente 40 pequenos e grandes produtores rurais entraram com ações e conseguiram pareceres favoráveis em primeira instância. O caso está agora em segunda instância e é julgado pelo TRF (Tribunal Regional Federal) – 3ª Região.
Segundo Cícero Costa, advogado que cuida de forma individual da causa de cada um dos produtores, afirma que o Incra legisla em causa própria nessa questão. Isso porque é o instituto responsável por todos os trâmites administrativos, como instituir o procedimento, identificar a área, declarar a ocupação como quilombola e julgar sua defesa administrativa.
“Nesse pormenor, ele [Incra] atua como parte interessada, porque ele advoga em favor da comunidade quilombola e atua como juiz do próprio interesse, ou seja, como é ele que julga se o seu título é bom ou não, se sua posse é boa ou não, se sua titularidade é legitima ou não, e ele decide sempre contra o título de propriedade, sempre contra a matrícula imobiliária, então ele atua nos dois pontos: atua como advogado no interesse do quilombola e como juiz no interesse do quilombola”, explica.
A OCUPAÇÃO
Ainda de acordo com o advogado, as famílias dos fazendeiros alegam ter comprado as áreas de forma legal. Na versão dele, Dezidério nasceu em 1868 durante a escravatura, que só foi abolida em 13 de maio de 1888. Como era negro, ele nasceu escravo. Na década de 30, ele teria vindo como condutor de bois para o então Mato Grosso, hoje Mato Grosso do Sul e em 1936 ocupou 3.748 hectares das terras conhecidas hoje como Picadinha, ano em que foi outorgado o título de propriedade a ele pelo Estado.
“Ainda que tivesse nascido escravo, quando assumiu essas terras, ele assumiu como um homem livre”, disse.
Naquela época, a pessoa podia ocupar uma terra devoluta do Estado e entrar com um pedido de regularização. Caso não houvessem outros interessados, o Estado fazia a medição, estabelecia um preço e o ocupante da área “comprava” a terra do governo. Dezidério teria feito dessa forma. Em 1937 ele teria falecido e feita a partilha dos bens entre os herdeiros, sendo que estes venderam suas partes para as famílias dos produtores rurais que hoje lá estão.
Em 2005, Dezidério foi reconhecido como escravo pela FCP (Fundação Cultural Palmares), que é o órgão vinculado ao Ministério da Cultura que emite a Certidão de Auto Reconhecimento, de acordo com o estabelecido no Decreto 4887/03. Desde então, são feitos estudos para identificar e demarcar a área que ele ocupou na Picadinha. “Aquela terra passou a ser uma terra ‘contaminada’ pela ocupação quilombola, pela ocupação escrava”, diz o advogado.
Já o MPF (Ministério Público Federal) defendeu ao longo dos últimos anos uma outra versão. Segundo divulgou em notas sobre o caso divulgadas entre 2012 e 2013, por exemplo, Dezidério nasceu em 1867 como escravo e viveu a abolição. Ele teria saído de Minhas Gerais onde vivia para onde é hoje Mato Grosso do Sul. Conforme a procuradoria, o ex-escravo faleceu em 1935, “antes de concluir o processo de titulação de suas terras, o que deu origem a diversas invasões, que resultaram no esbulho que sofreu Dezidério de Oliveira e sua família”.
Em janeiro deste ano, o professor Mário de Sá Teixeira Júnior da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados), chefe do Neab (Núcleo de Estudos Afrobrasileiros), concedeu uma entrevista ao Dourados News. Nessa, ele descreve detalhes de aspectos históricos e conceituais sobre a ocupação da área pela comunidade quilombola, relembre aqui.
OUTRAS ÁREAS
De acordo com o Incra, ao todo são hoje 18 processos para regularização fundiária de territórios quilombolas abertos no Incra em Mato Grosso do Sul. Além de Dourados, também atinge cidades de Campo Grande, Nioaque, Corumbá, Sonora, Pedro Gomes, Rio Brilhante, Maracaju, Bonito, Corguinho, Jaraguari, Aquidauana.
Ainda conforme o instituto, “todas as 18 comunidades são reconhecidas como Comunidades Quilombolas pela Fundação Cultural Palmares. O reconhecimento é a primeira etapa no processo de regularização fundiária”.
Existem outras comunidades no Estado com a Certidão de Auto Reconhecimento da FCP, já que ao todo são 22. No entanto, segundo o Incra, as demais não solicitaram a abertura do processo de regularização fundiária de seu território no instituto.
Fonte/Dourados News