Cenário econômico difícil, fuga de investimentos e processos governamentais indicam que pior momento das grandes empresas de tecnologia pode estar longe de acabar
Após um ano extremamente turbulento, em que demitiram dezenas de milhares de funcionários, perderam trilhões em valor de mercado e enfrentaram intensas brigas judiciais, as big techs — as maiores empresas de tecnologia do mundo — iniciaram 2023 de forma igualmente tumultuada.
A Alphabet, controladora do Google, anunciou o desligamento de 12 mil funcionários nos próximos meses, enquanto a Microsoft começou um processo de demissão de 10 mil empregados, até março. A Spotify, uma das poucas gigantes europeias do setor, também anunciou a demissão de 600 funcionários, em 2023.
Desde o início da crise, no último trimestre do ano passado, as big techs já demitiram cerca de 63.830 empregados, um número que fica maior a cada semana.
Em um sinal de expansão da crise no setor, as demissões começam a atingir também empresas especializadas em serviços corporativos, um setor que cresce menos aceleradamente, porém considerado mais estável que os produtos para consumidor.
A IBM, outra titã do mercado de tecnologia dos Estados Unidos, revelou que vai dispensar 3,9 mil funcionários, pouco mais de 1% da força de trabalho da empresa. A Salesforce, dona do aplicativo de comunicação Slack e gigante do setor de computação na nuvem, anunciou no início de janeiro a demissão de 10% dos funcionários como parte de um projeto de “reestruração”. A alemã SAP, líder do setor de softwares colaborativos, tomará medidas similares e cortará 3.000 empregos.
Um levantamento da plataforma Crunchbase mostra que a crise atinge pesadamente toda a área de tecnologia. Os números revelam que empresas do setor já demitiram ou anunciaram a demissão de 58 mil pessoas em 2023, o que se soma aos 140 mil empregos perdidos de 2022.
O problema também é profundo na valorização de mercado. Segundo a empresa de análise de dados Morningstar, em valores brutos, as seis maiores empresas de tecnologia dos EUA com ações na bolsa (a Nvidia foi acrescentada ao grupo) perderam US$ 3,8 trilhões (R$ 19,4 trilhões, no câmbio atual) em valor de mercado em 2022, o que as fez voltar aos mesmos níveis de valor de julho de 2020.
A única gigante que segue sem grandes tremores é a Apple, que não fez demissões significativas e sorrateiramente conquista territórios de concorrentes. Enquanto se mantém fabricante de hardware de sucesso colossal, a corporação também invade o mercado de publicidade. A Apple proibiu cookies de terceiros no navegador Safari, e ainda aguarda os desdobramentos de processos antitruste contra o Google e Meta.
Também estuda vender anúncios na Apple TV, e já fatura bilhões de dólares com publicidade na App Store e Apple News.
Tempestade perfeita
O motivo para uma crise de tais proporções é um grande ajuste após o excesso de otimismo e lucros gigantescos durante o período da pandemia de Covid-19, quando massas populacionais confinadas aumentaram os gastos com produtos digitais. O crescimento acelerado resultou erm contratações massivas em todo o setor.
“Aliado a isso, o aumento da preocupação com o impacto ambiental e a sustentabilidade também tem afetado essas empresas. A continuidade das demissões em 2023 pode ser vista como uma tentativa de manter a competitividade e continuar a maximizar lucros, mas pode também indicar uma piora das condições econômicas e de mercado”, aponta Rogério Guimarães, CEO da Covenant, o braço tecnológico da rede de auditoria e consultoria Crowe Macro, em entrevista.
O fim da maioria das restrições físicas fez tais hábitos recuarem, o que obrigou as big techs a tentarem aproveitar a maré positiva e ajustar seus negócios para continuar se expandindo. Por trás disso, também existem pressões dos investidores, em busca de mais crescimento.
“Com a diminuição da liquidez de capital que se deu a partir dos aumentos de juros nas maiores economias do mundo, e a diminuição da integração econômica internacional, o custo de oportunidade do capital aumentou, o que fez fundos e bancos de investimento exigirem rentabilidades mais altas para justificar o risco de investir em novas e arriscadas tecnologias”, ressalta Herman Bessler, CEO da Templo.cc, uma consultoria para empresas de tecnologia.
Marcos Chiodi, CEO da Monitora, empresa de desenvolvimento de tecnologias para o ambiente corporativo, detalha as condições macroeconômicas que resultaram na atual cautela de investimentos em empresas de crescimento rápido:
“A inflação de diversos países aumentou e, para contê-la, os bancos centrais aumentaram os juros. O que significa inflação e juros altos? Inflação significa reduzir a capacidade de compra das pessoas, enquanto juros altos significa o governo dos países se disponibilizarem a pagar uma remuneração maior por dinheiro emprestado. Com isso, os empresários acabam tirando o dinheiro do mercado. Ou seja: investem menos em capital de risco, e colocam o dinheiro nos bancos”, explica Chiodi.
Há ainda problemas específicos de cada empresa. O Twitter enfrenta sua própria tempestade, após a rede social ser comprada pelo bilionário Elon Musk. Com a necessidade de cortar custos para pagar a dívida da compra, Musk demitiu mais da metade da força de trabalho da plataforma, parou de pagar alugueis, leiloou objetos, livrou-se de centros de processamento de dados e até mesmo deixou escritórios sem itens básicos, como papel higiênico.
A Tesla, fonte da riqueza de Musk, não fez muito melhor e foi a empresa de tecnologia com o pior desempenho financeiro em 2022.
Já a Meta, busca se diversificar e investe pesado no chamado metaverso, uma rede de realidade virtual que já drenou US$ 10 bilhões e ainda parece muito longe de cair nas graças do público e dar algum lucro. Investidores ainda classificam toda a divisão de metaverso como uma “aposta arriscada” de Mark Zuckerberg.
“A soma destes fatores ocorreu justamente em um momento de expectativa de recessão,
tendo em vista a desaceleração chinesa e a guerra na Europa, formando uma ‘tempestade
perfeita’”, ressalta Bessler.
Na opinião desses especialistas, o movimento pode até ser benéfico para empresas e startups brasileiras, que poderão contar com profissionais qualificados disponíveis no mercado.
“Nesse momento, com o mercado mais seletivo e numa situação de ajustes, parte desses profissionais pode voltar a atuar em empresas brasileiras trazendo, inclusive, boas práticas que foram adquiridas nessa experiência ‘internacional’”, aposta Rafael Franco, CEO da Alphacode, empresa que desenvolve projetos no ambiente mobile.
Demissões por email
O princípio da crise no setor, com demissões massivas em departamentos de atendimento ao cliente, se aprofundou, recentemente passou a afetar também divisões estratégicas das maiores empresas de tecnologia do mundo. Um levantamento divulgado pelo site The Information revelou que, no Google, times responsáveis pelo navegador Chrome, Busca, Android e Cloud também foram sacudidos por demissões.
Mesmo funcionários avaliados como “de alto desempenho”, e gerentes com salário anuais acima de US$ 500 mil (R$ 2,5 milhões) foram desligados da empresa. O ex-gerente de produtos da empresa, Justin Moore, revelou no LinkedIn que descobriu ter sido demitido após “desativação automática de conta às 3h da manhã”. Moore trabalhou na empresa por 16 anos. Na publicação, ele afirmou que não recebeu “nenhuma das outras comunicação”, e que o tratamento mostra como a corporação o enxergou como “100% descartável”.
Jeremy Joslin, engenheiro de software do Google por 20 anos, contou uma história semelhante no Twitter, onde revelou ter descoberto a demissão “inadvertidamente por email”.
Os depoimentos não pararam por aí: “Verifiquei meu telefone e vi uma notificação de que meu acesso corporativo expirou, junto com uma notificação do NYT [New York Times] anunciando as demissões, contou Elizabeth Hart, gerente sênior de marketing, também demitida.
As demissões em postos mais altos indicam que a empresa também mudou uma política de permitir que funcionários dediquem cerca de 20% do tempo para projetos internos paralelos, ao mesmo tempo em que cortou a vasta maioria de tais iniciativas.
Na Microsoft, os cortes atingiram duramente o setor de games, segundo a Bloomberg. Desenvolvedores do game Starfield, do estúdio Bethesda, foram alguns dos afetados, assim como o 343 Industries, um dos responsáveis pela franquia Halo.
Na Amazon, com demissões na ordem de 18 mil pessoas, os setores mais atingidos foram os responsáveis por dispositivos de áudio, como a Alexa e o Echo. A rede CNBC afirmou também que o setor Prime Air, que desenvolvia um serviço de entregas rápidas por drone, também foi severamente atingido. Em resposta à emissora, a Amazon se recusou a dizer quantas pessoas do setor foram desligadas.
Novos negócios
De certa forma, tais empresas podem estar aproveitando a crise para se livrar de produtos sem perspectiva de lucro ou que possuem orçamentos muito altos. A Microsoft enxugou a divisão responsável pelo dispositivo de realidade misturada HoloLens, provavelmente porque o Congresso dos EUA negou um pedido dos militares do país para adquirir 6.900 headsets do tipo. Da mesma forma, também está fechando a rede social AltspaceVR, baseada em realidade virtual.
“As empresas podem buscar diversificar suas fontes de receita para reduzir a dependência de um ou dois principais produtos ou serviços. Isso pode incluir o desenvolvimento de novas divisões, ou a aquisição de empresas em outros setores”, afirma Rogério Guimarães.
Como exemplo, o Google manteve intacto o setor Brain, responsável por todas as pesquisas com inteligência artificial, uma área considerada fundamental pela empresa, principalmente após o ChatGPT se mostrar uma ameaça ao domínio da empresa no setor de buscas.
Outro ajuste concreto pode ser visto na aproximação dessas empresas com corporações financeiras. Em dezembro, a Microsoft comprou 4% de participação acionária da Bolsa de Valores de Londres, em um movimento que indica uma aproximação ainda maior entre operadores do mercado financeiro e grandes corporações de tecnologia.
Em novembro de 2021, o Google anunciou investimento de US$ 1 bilhão no CME Group, para mover os sistemas de negociação da bolsa de derivativos dos Estados Unidos para uma plataforma baseada em computação em nuvem.
No mesmo mês, Nasdaq e Amazon anunciaram uma parceria de vários anos para mudar os sistemas de negociação da bolsa norte-americana para sistemas de computação em nuvem.
“A Microsoft também anunciou um investimento pesadíssimo na OpenAI, mirando o mercado do Chatbot GPT. As big techs possuem modelos de negócios bastante diversificados e certamente os serviços financeiros estão nos planos daquelas que ainda não participam desse mercado”, ressalta Herman Bessler.
Os reguladores expressaram preocupação com o excesso de confiança das empresas financeiras em poucos provedores de serviços de computação em nuvem, dado o potencial impacto no setor caso um desses provedores sofra problemas.
Na mira de governos
Governos e órgãos reguladores também estão de olho no monopólio que essas empresas exercem em vários setores econômicos. Um processo recente aberto pelo Departamento de Justiça dos EUA busca pôr fim ao que o governo considera um abuso do domínio do setor de publicidade. A ação faz parte da tentativa do governo dos EUA de nivelar o mercado de tecnologia, o que também inclui outras empresas, como Amazon, Meta (proprietária do Facebook) e Apple.
No entendimento do departamento, o Google “usou meios anticompetitivos, excludentes e ilegais” para dominar o setor de publicidade, e “eliminar” qualquer ameaça a seu monopólio no setor. Oito estados do país aderiram à acusação contra a empresa, que pode mudar radicalmente a forma como o país encara a atuação de tais corporações.
Anteriormente, o Google já foi acusado de coletar dados sem autorização nos Estados Unidos, cometeu sucessivas violações de privacidade em vários países europeus, descumpriu leis federais com o assistente de voz, monitorou sem permissão, entre inúmeros outros processos.
Da mesma forma, a Meta, controladora do Facebook, também tem uma extensa ficha corrida. Muitos dos processos e acusações derivam de depoimentos de ex-funcionários — no episódio conhecido como “Facebook Papers” —, que afirmaram que a empresa coloca os lucros acima do bem-estar dos usuários.
Além disso, desde o fim de 2020 é acusada de monopólio e violação da lei antitruste dos EUA. Diversas ações movidas pela Comissão Federal de Comércio apontam que a empresa usa o domínio de mercado para esmagar concorrentes e empresas menores e inovadoras. Um dos casos mais emblemáticos foi a Snapchat, que recusou ofertas de compra do Facebook, e viu sua função de snaps ser imitada pelo Instagram, na função “Stories”.
Um novo processo que será apresentado a um tribunal distrital da Califórnia quer ir ainda mais longe e responsabilizar os diretores de tais empresas pelo uso de algoritmos que sabidamente viciam seus usuários. A turma de advogados responsável pela queixa compara tais executivos aos donos de empresas de cigarros, que esconderam por décadas que sabiam do teor viciante e cancerígeno do produto.
“Com o aumento da regulamentação e investigações antitruste, as empresas podem precisar mudar suas práticas comerciais e seus modelos de negócios para se adequar às novas regras. Isso pode incluir a divisão de negócios ou a venda de divisões específicas”, aponta Rogério Guimarães.
Governos também se movimentaram e passaram a agir contra o problemático uso de conteúdo de empresas de comunicação sem o devido pagamento. Países como Austrália, Nova Zelândia, Canadá e França já criaram leis que exigem o pagamento por conteúdo do tipo, o que fez tais empresas negociarem com portais e editoras para não encerrar parte das operações nesses locais.
“É fundamental que aqueles que se beneficiam de seu conteúdo de notícias realmente paguem por isso”, ressaltou o ministro neozelandês da Radiodifusão, Willie Jackson, quando apresentou o projeto de lei, em dezembro.
Crise não terminou
O que devemos esperar do desempenho de tais empresas ao longo deste ano? Os especialistas ressaltam a complexidade de um mercado tão dinâmico como o de tecnologia antes de fazer previsões do tipo, mas apontam que as turbulências devem prosseguir.
“A continuidade das demissões em 2023 pode ser vista como uma tentativa de manter a competitividade e continuar a maximizar lucros, mas pode também indicar uma piora das condições econômicas e de mercado”, afirma Rogério Guimarães.
Já Rafael Franco acredita que a onda massiva de demissões e ajustes estruturais de tais empresas está em seus desdobramentos finais. “A crise teve início no segundo semestre e, na minha visão, está apenas sendo concluída em 2023. Acredito que esse cenário faz parte de um ajuste, e percentualmente os cortes de pessoal ainda não são relevantes para essas empresas”, diz ele.
Herman Bessler afirma que as demissões são parte de um “ciclo de mercado”. “O ajuste do tamanho da força de trabalho das big techs, assim como o ajuste no valor de mercado das empresas e na sua expectativa de crescimento ainda está em curso, mas deve terminar ainda neste ano de 2023. É natural dos ciclos de mercado”, ressalta o executivo.
Fonte: R7